A fenomenologia
- A fenomenologia é um idealismo.
- Existe na fenomenologia uma tensão (ou mesmo uma contradição) entre um mundo que precede a consciência (a consciência é vista como estritamente humana), por um lado, e por outro lado a consciência (humana) que dá todo o sentido ao mundo.
- A fenomenologia coloca em causa o absoluto da consciência — seja esse absoluto imanente (Hegel), seja transcendente.
Embora a fenomenologia tenha sido útil em áreas da ciência cognitiva, na psiquiatria ou na sociologia, sob ponto de vista da filosofia (e por ser um idealismo) não é uma corrente filosófica que me mereça especial atenção.
Quando se fala aqui de fenomenologia, refere-se à fenomenologia segundo Edmund Husserl. Ademais, os conceitos de imanência e de transcendência não correspondem aos conceitos clássicos utilizados pela teologia e filosofia católicas da Idade Média (Escolástica).
Este texto pretende ser um resumo, e não, como é óbvio, uma abordagem exaustiva a um tema que é complexo e até polémico.
A fenomenologia, segundo Edmund Husserl, pode-se dividir em quatro áreas, por assim dizer:
- A filosofia como “ciência rigorosa”;
- O regresso à “vivência originária”, ou “intencionalidade” da consciência;
- A “redução fenomenológica”, ou Epoché;
- A intersubjectividade.
A filosofia como "ciência rigorosa", segundo Edmund Husserl, deve ser analisada no contexto da época em que Husserl viveu (princípios do século XX), em que reinava, na cultura europeia, o “império da Física”, o positivismo e o cientismo. A filosofia de Edmund Husserl retoma o desafio que a ciência positivista triunfante do início do século XX lança à filosofia, e restitui a esta última um lugar ameaçado e contestado pelo positivismo (neopositivismo). É neste sentido que Husserl concede à filosofia um estatuto de “ciência rigorosa”, em um contexto de crise da filosofia.
Esta crise atinge simultaneamente a matemática e a filosofia. No dealbar do século XX, o psicologismo e o positivismo dominam, e propalam, na cultura, a ideia segundo a qual as leis lógicas estão reduzidas a leis psicológicas que regem a natureza particular do espírito humano, e que, por outro lado, a verdade só pode ser encontrada no campo das ciências. Existe aqui um duplo perigo: por um lado, a redução ao silêncio por parte da filosofia, e, por outro lado, o relativismo que recusa obedecer ao conceito de verdade como possuindo um carácter absoluto. É neste contexto que Edmund Husserl pugna pela filosofia como “ciência rigorosa”.
O regresso à “vivência originária” pretende ser a vontade de descrever, de uma maneira simples, a forma como uma coisa (o objecto) se apresenta à consciência (humana) – o modo como as coisas (os objectos) se manifestam. Ou seja: as coisas (os objectos) existem como fenómenos. E vem daqui a denominação de “fenomenologia”, segundo Husserl.
Segundo Edmund Husserl, é um contra-senso interpretar os fenómenos (as coisas, os objectos) como meras aparências (realismo de Husserl), cuja essência (dos fenómenos) seria necessário captar: pelo contrário, a fenomenologia é uma descrição das essências: ela descreve “o que se passa” quando a consciência “visa” um determinado objecto. Para isso, a consciência utiliza aquilo a que Husserl chama de “variação eidética”1, que consiste em fazer variar imaginariamente as percepções da essência (do fenómeno) de forma a fazer surgir uma invariante2.
Por exemplo, o triângulo tem três lados, e não seria um triângulo se não tivesse três lados. Mas a essência do triângulo não existe independentemente do acto da consciência que o “visa”3: se a visão da essência – neste caso, o triângulo – é originária e não derivada (como pretende o empirismo e/ou o psicologismo), a essência – segundo Edmund Husserl – não é separável do acto que a “visa” e à semelhança do platonismo e/ou dos defensores de um realismo das essências.
Para acentuar a correlação entre o acto da consciência que visa um objecto – a intencionalidade –, por um lado, e o objecto visado, por outro lado, Edmund Husserl utiliza os termos “noese” para o primeiro, e “noema” para o segundo. O objecto visado é o noema, e o acto da consciência que o visa é a noese.
A “redução fenomenológica” é a suspensão do juízo (avaliação, julgamento) acerca do mundo e daquilo a que se convencionou que seja significação do mundo.
Nada é mais certo do que a existência de um mundo que ultrapassa a simples visão que dele eu possa ter, ou a simples consciência que dele eu tenho. A questão será, então, a de compreender essa certeza, apoiando-me não em um primeiro nível de evidência, simplesmente factual ou empírica – mas antes em uma evidência mais “originária” e apodíctica que (alegadamente) a fundamenta.
Edmund Husserl retoma o cogito de Descartes: a única certeza que eu tenho é a de que eu existo.
Em função dessa certeza, Husserl suspende todo o juízo de existência acerca do mundo, e pratica a Epoché4. A existência do mundo é colocada entre parêntesis. Através desta “redução fenomenológica”, Husserl alcança a certeza apodíctica da existência do sujeito, ou o “Eu Transcendental”. Ora, mesmo suspendendo toda a crença no mundo, o sujeito “visa” um objecto que não se esgota nessa visão; é o que demonstra a sua análise da percepção.
Por exemplo, uma casa – qualquer casa –, quando percebida (percepção) revela-me uma superfície, mas, enquanto objecto “visado”, essa casa, que é captada pela minha percepção e pela minha consciência, também tem uma profundidade, etc. – é a forma ou a essência da casa que é captada pela consciência, e esta excede em todos os sentidos o que é percebido como simples facto ou conjunto de sensações. Edmund Husserl demonstra como a temporalidade (o espaço-tempo) só é possível em um duplo movimento de presença-ausência, de imanência e de transcendência.
A intersubjectividade é o que une o Eu ao Outro.
Se a redução fenomenológica faz aparecer o sujeito transcendental como aquilo a partir do qual se podem manifestar significações (valores) e um mundo apreendido através delas, ela (a redução fenomenológica) não desemboca nem em um relativismo, nem em um solipsismo.
A redução fenomenológica não isola o sujeito ou Eu Transcendental em um mundo à sua medida: pelo contrário, é o Outro que ocupa aqui um lugar primordial. A constituição do mundo, na sua transcendência (ou seja, segundo Husserl, na sua dimensão simplesmente humana), pressupõe de facto o Outro – porque o Outro não é um simples objecto, mas antes é também um sujeito, um alter ego. O Outro apreende um mundo a partir de uma perspectiva e de um ponto de vista diferentes dos meus; contudo, é o mesmo mundo que é “visado” e apreendido. O Outro completa e enriquece a minha percepção do mundo: sem essa partilha e sem essa troca – ou seja, sem essa intersubjectividade –, nenhuma cultura (seja científica, artística, histórica ou política) seria possível.
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Fenomenologia (aditamento)
No século XVIII, fenomenologia designava o estudo das “aparências” ou dos “fenómenos” em sentido kantiano. O seu emprego especifico por Hegel5 deriva daqui. Hegel descreve histórica e psicologicamente as “aparições” pelas quais o espírito passa de sensação individual até à ideia absoluta, encarnada pela razão universal.
Hoje, fenomenologia é o método e sistema – fenomenologia transcendental – próprios de Husserl. Edmund Husserl (1859-1938) quis fazer da filosofia uma "ciência rigorosa"6. Formado à base de estudos matemáticos, Husserl experimentou a influência de Brentano que o orienta para a psicologia. Brentano encontrou nos Escolásticos a ideia de intencionalidade: a consciência psicológica nunca está vazia: ela é sempre consciência de alguma coisa de exterior a si.
Transpondo esta noção de intencionalidade para o domínio da lógica, Husserl afirma que a consciência do matemático ou do lógico não age a partir de dados empíricos, mas de certas “essências” ou “objectos ideais”. Por exemplo, se segurarmos uma mão-cheia de fósforos, não podemos imaginar claramente os quarenta fósforos que ela tem, pois que nos servimos correntemente do número 407.
O discurso husserliano consiste, mediante a transposição destes “objectos ideais” para a lógica, fazê-los “apanhar” pela consciência munida de intencionalidade. Rejeita o modelo da aproximação psico-fisiológica, depois rejeita o modelo histórico e a formalização aritmética. Conclui com a renovação da psicologia do ego, enriquecida com a distinção entre o “vivido real” e o “vivido inactual”8, sendo o actual tomado tanto no sentido temporal como no sentido aristotélico.
A existência do concreto9 aparece como a tomada de consciência de uma percepção que se inclui a ela mesma, que Husserl chama o “mundo”. É aqui que se situa a sua articulação com os filósofos existencialistas que Husserl10 não subscreveu. Mas a própria consciência possui uma essência: para a atingir é preciso fazer uma operação que Husserl chama de Epoché fenomenológica. Esta operação delimita, ao mesmo tempo, a consciência como subjectividade transcendental e o campo de análise a que Husserl reduz a filosofia.
Em resumo, a consciência nunca teve conteúdo: ela é para si mesma “acto puro” que constitui o objecto e o faz aparecer.
Esta concepção de consciência, segundo Husserl11 , aproxima-se da concepção de consciência da filosofia quântica segundo Eugene Wigner e/ou Bernard D'Espagnat.
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